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O mito de Perseu e o processo de amadurecimento pessoal

  • Eduardo Nunes da Silva
  • 15 de jul. de 2020
  • 9 min de leitura

Todo ser tende a realizar aquilo que está latente em seu interior. Por isso, como os demais seres, nós seres humanos buscamos essa realização, quanto ao corpo e também quanto à psique. Nesse processo, o homem é impulsionado por forças instintivas inconscientes, mas é capaz de tomar consciência desse desenvolvimento e influenciá-lo. No confronto da instância inconsciente com o consciente, em um processo de conflito e colaboração entre ambos é que ocorre o amadurecimento da personalidade e os diversos componentes se unem numa síntese, revelando um indivíduo pleno.

“As imagens do mito são reflexos das potencialidades espirituais de cada um de nós. Ao contemplá-las, evocamos os seus poderes em nossas próprias vidas[1]”. Na mitologia grega há o mito do semideus Perseu, que derrotou a górgona Medusa. Segundo o mito, qualquer um que olhasse para a Medusa se transformava em pedra. Perseu era filho de Zeus, o maior dos deuses do Olimpo, com a mortal Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos. A narrativa do mito é extensa e envolve uma séria de eventos, desde o nascimento de Perseu e sua infância e juventude. Mas vou abordar apenas a parte central, na qual Perseu enfrenta a Medusa para salvar Andrômeda.

Em uma das versões do mito, Perseu, para destruir o Craken, uma terrível criatura que habita o fundo do oceano e que ameaçava sua amada Andrômeda, parte em busca da cabeça da Medusa, rainha das górgonas, que pretende usar como arma contra o Craken.

A Medusa vivia em uma caverna localizada em uma ilha muito distante. Como não dispunha de tempo até que o Craken emergisse do mar para devorar Andrômeda, Zeus, pai de Perseu, enviou ao herói o cavalo alado Pégaso. Em algumas versões do mito, Zeus ordena a Hermes (ou Mercúrio) que empreste a Perseu suas sandálias aladas. Então provido de asas, Perseu consegue deslocar-se com grande velocidade até o submundo onde fica a ilha na qual se encontra a caverna da Medusa. Para a empreitada Perseu recebeu também um escudo espelhado, presente da deusa Minerva, e de Hermes uma espada, além do manto da invisibilidade de Hades, que ele obtém junto às ninfas e uma sacola apropriada para transportar a cabeça da Medusa.

Perseu se acerca da ilha, mas para chegar a ela não pôde ir voando e foi obrigado a fazer a travessia em uma balsa, conduzido por um barqueiro. Chegando à ilha encontrou uma infinidade de estátuas de pedra. Na realidade, são guerreiros que no passado tentaram confrontar a Medusa, mas ao olhar para o monstro foram transformados em pedra.

Oculto pelo manto da invisibilidade, Perseu vai ao encalço da Medusa. Ele evita olhar diretamente para ela, olhando através do reflexo em seu escudo espelhado. Ao localizar a górgona, com um golpe certeiro de espada, decepa-lhe a cabeça, a qual coloca na sacola. Então sai da ilha levando a cabeça decepada e, novamente munido de asas (de Pégaso ou das sandálias de Hermes), parte para confrontar o Craken. Quando o titã Craken emerge das profundezas abissais, Perseu ergue a cabeça da medusa diante dos olhos do titã. O Craken ao olhar para os olhos da medusa se transforma em uma gigantesca estátua de pedra e desmorona, voltando petrificado ao fundo do mar. Desta forma, Perseu salva sua amada Andrômeda e também o reino de Argos.

Perseu é o herói, aquele que dá a vida por algo maior que ele mesmo ou Perseu pode ser cada um de nós. Andrômeda, a amada, representa nossas potencialidades espirituais, nossos objetivos maiores, a missão pela qual viemos ao mundo. Para entrar neste mundo fomos concebidos no ventre de nossa mãe onde tínhamos alimento, aconchego e proteção, vivendo em uma suave penumbra, até sermos expulsos por contrações e lançados a um mundo novo e desafiador. Chegamos totalmente dependentes e começamos nossa caminhada pela vida. A realidade concreta muita vez se apresenta aterradora e invencível, como o Craken que emerge do mar para devorar nossos sonhos.

Em algum momento na vida todos somos obrigados a fazer a jornada interior e acessar nossos potenciais espirituais que permanecem armazenados como em uma caverna. Esse é o processo de amadurecimento pelo qual todos devemos passar para nos apoderarmos do “grande poder”, que nos permitirá vencer as situações que a vida nos apresenta, mas para isto é preciso enfrentar nossos medos e limitações. Esta é a saga do herói que enfrenta mistérios, dragões, destrói as coisas sombrias e retorna vitorioso. No livro O Poder do Mito, Bill Moyers pergunta a Joseph Campbel: “Como fazer para destruir o dragão em mim mesmo? Como é a jornada que cada um de nós tem de empreender, que você chama de ‘a alta aventura da alma’?”. Campbell reponde: “Minha fórmula geral, para meus estudantes, é: ‘Persiga a sua bem-aventurança’. Descubra onde está e não tenha medo de segui-la”.

Perseu parte em busca da cabeça do monstro, a Medusa, rainha das górgonas. Ele sai para um combate ao qual outros heróis antes dele se lançaram e falharam. Mas para a empreitada leva um arsenal poderoso, a espada, recebida de Hermes, o Escudo, dado por Minerva, além do manto da invisibilidade e a bolsa na qual deve transportar a cabeça da medusa.

As sandálias aladas ou o cavalo Pégaso representam o tempo. O amadurecimento pessoal, a evolução espiritual, tudo isto demanda tempo. No livro Pensamentos de Sabedoria (1ed., 2013. pp.24-25) o mestre Masaharu Taniguchi explica que “existe a expressão ‘o tempo tudo resolve’. Tempo é ordem e sequencia desenhada no mundo da mente de Deus”. A oração xintoísta Misogi Harai no Norito é uma oração para a purificação do Universo, mas se a purificação universal for processada de forma muito rápida, haverá grande devastação e os sofrimentos serão insuportáveis, por isso no Misogi Harai no Norito, depois de rogar que o Universo seja purificado, no último verso é pedido para que esta purificação se processe ao largo do tempo e não de forma repentina. A purificação, a renovação e o amadurecimento demandam tempo.

Perseu voa até próximo da medusa, mas para chegar até ela deve deslocar-se de barco até a ilha onde ela vive. Águas, ilha e caverna representam o inconsciente. É no campo mental que se deve travar a batalha. A espada é o arquétipo da palavra. “Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Efésios 6:17). O escudo é dado por Minerva, deusa da sabedoria. O escudo é espelhado e através dele é que Perseu vê a medusa, sem olhar diretamente para o monstro, isto é, a sabedoria (Minerva) nos permite olhar as coisas de forma diferente, buscar uma nova visão, como o espelho que nos oferece um novo ângulo e inverte a imagem. A nova visão quer dizer sair da perspectiva imatura para a visão do adulto, como nos diz o apóstolo Paulo: “Quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino” (1 Coríntios 13:11).

Ao chegar à ilha, Perseu encontra muitos heróis transformados em pedra. No sentido mais profundo, não são outros heróis, mas é o próprio Perseu, ou somos cada um de nós. Na ilha (inconsciente) encontra-se paralisada, como uma estátua fora do tempo e do espaço, uma criança de quatro anos que presenciou a briga dos pais, o menino de seis anos, severamente repreendido por um adulto, sem entender bem o motivo da reprimenda, a garota humilhada diante dos colegas de classe, o adolescente sofrendo bulling dos colegas etc. Ou até coisas que remontam a outras encarnações e que trazemos arraigadas nas camadas profundas de nossa inconsciente e moldam nosso caráter e circunstâncias da vida, este é o simbolismo das estátuas de pedra.

O dr. Thomas A. Harris ilustra bem esse processo em que são gravadas situações de dor em nossa mente nos momentos de formação de nossa personalidade:

A situação da criança pequena, sua dependência e sua incapacidade para construir significado com as palavras faziam impossível para ela modificar, corrigir ou explicar qualquer dado. Sendo assim, se os pais fossem hostis e estivessem constantemente brigando um com o outro, uma briga era gravada juntamente com o terror produzido por ver duas pessoas de que a criança dependia para a própria sobrevivência prestes a se destruírem mutuamente. Não havia modo de incluir nessa gravação o fato de que o pai estava embriagado porque falira, ou de que a mãe estava furiosa porque acabara de descobrir que se encontrava novamente grávida.

(...) São registradas todas as admoestações, regras e leis que a criança ouviu de seus pais e viu através do tom de voz, expressão facial, carícia ou não carícia, até as mais elaboradas regras verbais e regulamentos adotados pelos pais quando a pequena pessoa passa a ser capaz de compreender as palavras. Neste conjunto de gravações estão os milhares de “não” dirigidos ao bebê, os repetidos “não faça isso” que o bombardeiam, as expressões de angústia e horror no rosto da mãe quando seu desajeitamento trouxe vergonha à família sob a forma de destruição do jarro antigo da tia Ethel.

(HARRIS, Thomas A. Eu Estou OK, Você Está OK. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. pp.42-43)

Como o herói que vence todos os percalços, nós também precisamos confrontar nossos medos e fraquezas. Mesmo que se sinta cercado por um mundo hostil ou por pessoas que aparentemente não a amam, saiba que tudo isso está em seu próprio interior e também em seu interior encontra-se a chave para mudar tudo. O mestre Masaharu Taniguchi nos diz no livro Você Pode Curar a si Mesmo (4ed., 2013. P.246), que:

Todas nós somos Kanzeon Bosatsu[2] e buscamos a salvação das pessoas, inclusive a nossa. Contemplando o aspecto das pessoas com quem lidamos, reconhecemos nelas o reflexo de nossa atitude mental e procurando nos aperfeiçoar, alcançamos a nossa salvação. Todas as pessoas aqui presentes[3] são Kanzeon Bosatsu, têm grande capacidade de observação; podem, pois, observar tudo e todos com a visão interior. É preciso observar principalmente a si próprios.

Perseu enfrenta a Medusa encoberto pelo manto de Hades, que torna a ele, Perseu, invisível. Isto demonstra a incapacidade da Medusa, que sequer pode ver seu oponente, isto é, os “fantasmas” interiores não tem qualquer poder, a não ser aquele que nós atribuímos a eles. A isto se refere a Sutra Sagrada Chuva de Néctar da Verdade no trecho que diz: “Em verdade, as forças maléficas,/ a força que oprime a nossa vida,/ a força que nos faz sofrer,/ não são forças que realmente existem de modo objetivo:/ nada mais são que dores criadas em nossa própria mente e sofridas por nossa própria mente.” Se confrontarmos essas forças maléficas que nos tem feito sofrer, munidos de nova sabedoria, vamos chegar à conclusão de que elas não têm qualquer força para nos oprimir, por isto a sutra sagrada diz: “Enfrentai o irreal com o real./ Enfrentai a mentira com a Verdade./ Enfrentai a imagem falsa com a Imagem Verdadeira./ Enfrentai a treva com a luz”.

Perseu regressa vitorioso portando a cabeça da Medusa, e com ela enfrenta a grande ameaça, o Craken e o vence também, desposando a amada Andrômeda. Derrotar a Medusa e voltar trazendo sua cabeça que é usada como arma, representa a emancipação da alma que enfrenta o maior medo, e o transforma em experiência (a arma da vitória). O Craken representa a realidade objetiva do mundo fenomênico, que pode se apresentar aterradora, mas que, em realidade, não pode fazer frente à nossa Natureza Divina. O mundo fenomênico é projeção da mente, portanto, mundano a mente, o mundo fenomênico também se transforma.

Mas como obter o “escudo de Minerva” para confrontar a força negativa presente em nossa própria mente e que nos petrifica? O escudo de Minerva representa a Sabedoria, da mesma forma que a ilha e a caverna da Medusa estão em nosso interior (inconsciente) a Sabedoria também reside em nosso interior, mas, diferentemente da caverna da medusa, que se localiza no interior de nosso eu fenomênico, a sabedoria é dom divino que se encontra no âmago de nossa Vida e que pertence a nosso “Eu real”, de origem divina. A leitura de livros como A Humanidade É Isenta de Pecado, da Coleção A Verdade da Vida, e vários outros livros da Seicho-No-Ie nos permitem “ingressar no recinto da grande Sabedoria”, mas para nos apoderarmos dessa Sabedoria é imprescindível praticar a Meditação Shinsokan assídua e diligentemente. O homem se vê através dos cinco sentidos e julga ser um corpo material, mas o verdadeiro ser humano é um ser de natureza espiritual, criado à imagem e semelhança de Deus, conscientizar-se disto é revestir-se de nova e verdadeira Sabedoria.

Lembre-se:

  • A sabedoria é dom divino que se encontra no âmago de nossa Vida e que pertence a nosso “Eu real”.

  • O verdadeiro ser humano é um ser de natureza espiritual, criado à imagem e semelhança de Deus.

O homem se vê através dos cinco sentidos e julga ser um corpo material, mas o verdadeiro ser humano é um ser de natureza espiritual, criado à imagem e semelhança de Deus, conscientizar-se disto é revestir-se de nova sabedoria.

[1] CAMPBELL, Joseph, 1904-1987. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. p.217.

[2] Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo

[3] O mestre Masaharu Taniguchi se refere aos presentes, porque este é um fragmento da transcrição de uma palestra proferida por ele com o título Preleções sobre Hannya Shingyō (Sutra da Sabedoria, do budismo)

 
 
 

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