Um conto zen
- Eduardo Nunes da Silva
- 26 de ago. de 2020
- 7 min de leitura

Um antigo conto zen narra um episódio ocorrido no Sul do Japão em um templo budista no qual, junto a outros monges, viviam dois irmãos. O mais velho, homem dedicado aos estudos e à meditação, era o mestre superior do templo, célebre pela amplitude de seus conhecimentos acerca da doutrina e pela profundidade de suas reflexões. O mais novo, que tinha um olho vazado e usava um tapa-olho, nem de longe tinha o empenho do irmão e por isso era tolo e incapaz de aprofundar-se em qualquer tema.
Certa noite, um monge peregrino bateu às portas do templo solicitando pousada e refeição. Pela tradição, em situações como essa o peregrino deveria confrontar-se em um debate com um dos monges residentes. Caso vencesse, receberia a refeição e pousada, mas no caso de perder, o viajante deveria seguir jornada sem receber qualquer coisa.
Como todos os residentes estavam envolvidos nos preparativos para as festividades da data natalícia de Sakyamuni, o Buda, que começariam nos próximos dias, naturalmente estavam cansados e ansiavam pelo merecido repouso. Somente o irmão mais novo estava mais disposto, pois, a bem da verdade, não havia realmente se empenhado na lida do dia. Dessa forma, ficou determinado que ele iria debater com o monge peregrino. O irmão mais velho recomendou que adotassem a forma de debate não verbal.
O zen budismo tem características peculiares, às vezes difíceis de entender para os ocidentais, por exemplo, um visitante de um templo pode receber como resposta a uma pergunta dirigida a um monge, em vez de uma explicação, um golpe no ombro, desferido com o nyoi-bō, uma espécie de bastão usado pelos monges. Os diálogos entre os monges muitas vezes são desconcertantes, os chamados koan (questão zen para mediação). Um koan, na maioria das vezes envolve um dilema sem solução aparente e contém aspectos inacessíveis à razão formal, e seu objetivo é conduzir à iluminação espiritual. Um exemplo famoso de koan é: “Batendo as duas mãos, uma na outra temos o som do bater de duas mãos; mas qual é o som de apenas uma das mãos?” Também existem os diálogos não verbais, através de gestos, e foi justamente esta modalidade que o monge mais velho recomendou ao mais jovem.
Desta maneira, ficou estabelecido o debate não verbal. O irmão mais novo entrou na sala onde o aguardava monge peregrino. Os dois se sentaram frente a frente sobre o tatami. O monge visitante tomou a iniciativa erguendo o dedo indicador, ao que o anfitrião respondeu erguendo os dedos indicador e médio, formando a letra V. O monge peregrino pôs-se a meditar e depois de alguns minutos ergueu três dedos, o indicador, o médio e o anelar, ao que o anfitrião respondeu prontamente mostrando o punho cerrado diante do rosto do visitante. E assim encerrou-se o debate. Alguns minutos depois o monge peregrino procurou o irmão mais velho, mestre do mosteiro, para se despedir.
“Meu irmão venceu o debate?” – indagou surpreso o velho mestre.
“Sim, brilhantemente!” – respondeu o peregrino – “Apesar de ter negada a pousada e sequer receber a refeição, parto enriquecido, pois alcancei um despertar profundo”.
“Antes de partir, poderia dizer como foi o debate?” – solicitou o mestre.
“Será uma honra compartilhar” – assentiu o peregrino – “Sentamo-nos frente e a frente e então ergui um dedo, simbolizando Buda. Ao que seu nobre irmão replicou, erguendo dois dedos, simbolizando Buda e o ensinamento, então ergui três dedos, simbolizando Buda, o ensinamento e os discípulos, que transmitem ao povo. Seu sábio irmão, sem vacilar sequer um segundo, mostrou o punho fechado, significando que os três, Buda, os ensinamentos e os discípulos são um só. Não tive mais argumento e me dei por vencido”.
Assim, agradecido, o peregrino se foi.
Ato contínuo, entrou cabisbaixo na sala do velho monge o irmão mais novo. O mais velho indagou:
“Então você venceu o debate?”
“De onde você tirou tamanho disparate” – respondeu o mais novo – “Não sou páreo para um homem terrível como aquele”.
“Diga-me então como foi o encontro entre vocês” – disse o mestre.
“Entrei na sala e nos sentamos frente a frente” – respondeu o mais novo – “E ele foi logo me ofendendo: você só tem um olho. Fiquei desconcertado, mas procurei manter a calma e a polidez. Ergui dois dedos, significando: parabéns! Você tem dois olhos. Mas ele não se deu por satisfeito e seguiu me ofendendo: e daí?! Juntos somamos apenas três olhos. Num rompante de indignação e fúria, perdi a paciência e ameacei dar-lhe um soco na cara”.
O velho mestre apenas sorriu e desejou boa noite ao irmão que se retirou.
Este breve conto nos apresenta um episódio em que duas pessoas estavam inseridas exatamente na mesma situação, mas um vivendo seu paraíso particular, enquanto o outro criou seu próprio inferno. Na figura do monge residente é retratada uma pessoa prisioneira de um profundo complexo de inferioridade por ter um olho vazado, além de outros aspectos negativos, fruto de sua própria indolência. Por mais que o outro tenha abordado conceitos elevadíssimos como Buda ou os ensinamentos do budismo e sua propagação, o residente, por sua vez, não conseguia se livrar de suas amarguras e sentia-se agredido, sendo que a agressão existia apenas na mente dele mesmo. E o monge peregrino, mesmo sendo ameaçado de levar um soco no rosto, viu em tudo apenas ensinamentos de Buda para conduzi-lo à iluminação.
O conto demonstra de forma bem humorada que todas as coisas partem de nosso interior e a nós retornam. A narrativa nos apresenta uma situação em que há um mal-entendido, em que o monge visitante não teve qualquer intenção de ser hostil ou descortês, mas a mesma lógica de que tudo parte de nós se aplica nos casos em que alguém recebe uma ofensa por parte de outrem que age com a deliberada intenção de ofender. Em casos assim, de igual maneira, o conflito também existe primeiramente em nosso interior. O mestre Masaharu Taniguchi diz claramente “Se alguém me fere, é porque eu próprio tenho a postura mental que fere os outros” (TANIGUCHI, Masaharu. Pensamentos de Sabedoria. 2013, p.95). O mundo fenomênico é projeção da mente, portanto, tudo que aparece no mundo fenomênico é projeção da mente. Todas as coisas e todos os eventos e circunstâncias do mundo do fenômeno, antes de aparecerem com forma perceptível, são criados no mundo mental. Tudo que percebemos através de nossos sentidos foi primeiramente, consciente ou inconscientemente, concebido na mente.
Um dos principais Pilares Doutrinários da Seicho-No-Ie diz que O mundo fenomênico é projeção da mente, é por isso que o Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo é reconhecido como padroeiro da Seicho-No-Ie, porque o Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo simboliza a força misericordiosa e o Amor de Deus, manifestado como Lei da Mente que preenche o Universo.
O Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo aparece na forma de pessoas ao nosso redor e sempre nos dá lições da Verdade. A pessoa que parece ser rude, na verdade não é rude. O Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo sente que algo está rude em algum lugar da nossa própria mente. É por isso que não devemos odiar os outros. O Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo aparece como nosso pai, mãe, ou nosso marido ou esposa, ou nossos irmãos e irmãs ou parentes afins, ou o presidente, executivos, companheiros de trabalho ou subordinados em nosso local de trabalho e está constantemente nos dizendo algo.
Mesmo quando alguma pessoa nos dirige palavras rudes, não devemos odiá-la, mas refletir sobre nossos próprios conteúdos mentais. Em certo sentido, mesmo as palavras rudes são um “sermão misericordioso” pregado pelo Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo, para que reflitamos e purifiquemos nossos próprios conteúdos mentais. Diz-se que reflete os sons do mundo, mas a Lei reflete todos os nossos conteúdos mentais.
Quando coisas más ou coisas que não desejamos se manifestam, mais do que procurar a causa externamente, devemos primeiro refletir sobre nós mesmos e ver que deve existir dentro de nós um “modelo da nossa mente” desse tipo.
(Idem, p.6)
Não só as palavras a nós dirigidas, mas os fatos que nos sucedem têm origem em nossa própria mente. Aquele que põe a culpa no ambiente, nas circunstâncias ou nas outras pessoas faz de si próprio um fantoche. O fantoche não tem vontade própria e é manipulado por terceiros. Quando passamos a buscar a causa de tudo que nos acontece em nosso próprio interior, deixamos a condição de fantoches e assumimos integralmente o protagonismo de nossa vida, isto é, tomamos consciência de nossa dignidade como filhos de Deus.
Se as pessoas não o valorizam, se há atritos no lar, se o trabalho não se desenvolve a contento e os assuntos da vida não se desenvolvem plenamente, faça uma análise sincera e profunda, se você não estaria agindo como o monge tolo, ensimesmado em seus complexos, medos e preconceitos em relação a si mesmo e aos outros. Para livrar-se de complexos e recalques, leia continuamente livros de autoria do mestre Masaharu Taniguchi, do mestre Seicho Taniguchi e demais livros da Seicho-No-Ie. São livros que não cumprem apenas a função de nos transmitir conhecimentos, mas são escritos de tal forma que, à medida que lemos, purificam nossa mente, inclusive as camadas mais profundas. Também é fundamental praticar a Meditação Shinsokan com assiduidade. Devemos nos empenhar em perdoar e agradecer a todas as pessoas, incluindo a nós mesmos. Assim nos orienta o mestre Masaharu Taniguchi no livro A Humanidade É Isenta de Pecado (13ed. 2012. p.148):
Devemos perdoar a todas as pessoas. E nós próprios estamos incluídos entre “todas as pessoas”. Precisamos perdoar os nossos próprios defeitos. Você deve dirigir-se ao seu defeito e perdoá-lo, mentalizando da seguinte forma: “Já estou perdoado. Fui completamente perdoado por Deus e tornei-me perfeito. Não tenho mais defeito algum e estou purificado.” Mentalizando assim repetidas vezes, visualize a cena em que você está imerso na luz de Deus e totalmente purificado, límpido com a neve.
Esta mentalização proposta pelo mestre Masaharu Taniguchi nos ensina a perdoar nossos defeitos. A religião costuma falar em perdoar os pecados e por isso a ideia de perdoar os pecados nos é familiar. Mas na maioria das vezes ficamos restritos àquilo que a religião tradicionalmente classifica como pecado, e não nos ocorre que é preciso termos especial atenção para perdoar também os defeitos de modo geral. Temos o hábito de sermos implacáveis com nossos defeitos e erros. Normalmente achamos que não somos bons o bastante. Isto começa na infância quando uma série de palavras e acontecimentos vão gravando em nossa mente a ideia de que não correspondemos às expectativas de nossos pais e das outras pessoas, e que somos incapazes e inferiores. Somos filhos de Deus, perfeitos e maravilhosos, mas não basta sabermos disto e retermos esta verdade apenas nas camadas superficiais da mente. É preciso mentalizar essa verdade e perdoarmos e amarmos a nós mesmos que somos extensão da Vida de Deus.
Lembre-se:
Todas as coisas partem de nosso interior e a nós retornam.
O mundo fenomênico é projeção da mente.
Para livrar-se de complexos e recalques, leia continuamente livros de autoria do mestre Masaharu Taniguchi, do mestre Seicho Taniguchi e demais livros da Seicho-No-Ie.
Pratique a Meditação Shinsokan com assiduidade.
Somos extensão da Vida de Deus.
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